Se eu me estendesse em tua encosta, se eu me espalmasse,
encontrar-me-ia ciente do instante e ciente de alcançar apenas um estado
infinitesimal, duração verossímil ao afeto de decompor-se e de compor-se
novamente, diante do todo abarcável. Mas
assim preferiria, transfigurar-me sem alvoroço, com o tempo inalienável que se
corta cada vez mais rapidamente, baralhando as imagens numa composição de
relações inquebrantáveis. E não mais forjaria meu destino em segredo. E não
mais levaria uma vida cotidiana. Sussurrando vidas bem tratadas numa teia rala
de encontros. Escondendo apenas parte do bem-querer do vocabulário para se
fazer da treva silêncio e sal. Buscando na linguagem ventosa dos amantes
notícias alvissareiras. E toda a cercania não valeria um pito se o pensamento
em flor não se fizesse em verso. E cada caco recolhido fazendo parte de um
jarro que não se estabelece se não deixar de ter-se como amarras frágeis. Desconhecendo
a construção, levantar alto-mar e encarar o furor natural da ambivalência dos
ânimos, sem a hostilidade das distâncias. Sabendo
certo que eu me demorei em tua encosta, e que eu tenho me demorado.
domingo, 30 de março de 2014
terça-feira, 11 de março de 2014
Em vista de uma memória límpida
Esqueceste, então, que a piedade é o conhecimento da singeleza? Esqueceste da canção para Alina, de Arvo Pärt, e de Chopin...? Jamais comeste do tomate-cereja fresco sobre o muro de alguma casa da infância, e hoje não seria eu a convidá-lo para o arrebatamento da tarde, no vigor da quebra de todas as ausências. Esqueceste, então, de chorar no convés, por finalmente avistar o amor passado de tantas querências confirmado pelo ultimato do porto? Esqueceste de refazer-te em sestas, esqueceste de destruir a lucidez de gabinete na luz noturna, esqueceste de marcar com uma fina linha vermelha de sangue a pele por motivo de ciclos que beiram ao excesso da solidão pessoal, esqueceste de ver a fome nos olhar de fogo dos animais, de avistar as estrelas perdendo com isso o fôlego – sim, porque a extensão do pensamento vai até as estrelas, e os corações humanos nesse interim de teias, são capazes de suportar apenas até onde o ar os encobre sem sufocá-los, sem que a alma seja palpitada até o momento do desprendimento total.
Esqueceste, principalmente, de tudo isso.
03/02/2014
No covil das festanças
As coisas se apinham, por isso precisam ser contadas. As
coisas se apunhalam, esbarram-se por um travessão, e todos os pensamentos
contidos transbordam logo num fim de tarde. Prepara-te para a diversão – diz
alguém -, e encontrarás a grande multidão da roda-gigante em movimento. Serão 5
ou 4 horas de inquietude, em meio a esta gente, alguns lampejos, olhares
cansados, roupagens de pele desgastadas pela noite das buscas - pouco encontro,
pouco encontro. Afastar-se dela, então, preferindo a clausura do ermitão –
diria outro. A verdade é que o composto das horas naturalmente pode levá-lo a uma
sinfonia agônica, quando não encontrado o apaziguamento da mente numa constância
do pensar por um fio condutor. A crítica de como os povos se refazem em meio à
festança, as rodas inebriadas pelo espírito de Baco, depois de tantos séculos,
não se vê a si mesma em capacidade de mudança. Lá está – até o pico da
escuridão e dos sentidos, espremido pelo calor da força das massas –, na
potência das reviravoltas e no nosso cansaço esmorecido de penetrá-lo, sendo
unicamente a linguagem o merecedor de todo salvaguardar.
Hoje, a exaustão só me é especialmente bem-quista quando por meio da razão alcanço as altitudes cósmicas. Cedo foi minha juventude: já não sou filha do Delírio.
Mas a roda se volta novamente contra mim. E sei que – na solidão – o regozijo de Baco também me é centelha. Fogo nos olhos, na luz pequenina.
10/02/2014
Hoje, a exaustão só me é especialmente bem-quista quando por meio da razão alcanço as altitudes cósmicas. Cedo foi minha juventude: já não sou filha do Delírio.
Mas a roda se volta novamente contra mim. E sei que – na solidão – o regozijo de Baco também me é centelha. Fogo nos olhos, na luz pequenina.
10/02/2014
À Morelliana
Como compor um texto sobre a ordem de um suave esmeril? Em
um tempo que se abre como um cata-vento a qualquer vento é preciso carregar a
pena e o tinteiro numa estratégia circense, sobre a corda do equilibrista,
manejando o passo sobre o cadafalso, distintamente. Da mesma forma que a
corrente cria mandalas que são aleatórias para os outros, catar as palavras no
pulo do peixe, deixando para os confins do mundo, a luva de borracha do falar.
Esmeril, aqui, rima com centopeias e aranhas. E a lucidez de gabinete se esvai
num zás, criando um refúgio de sapiência cujo refluxo vem de uma violenta
pressão xamânica. Desde o que pensa ao que fala, a reconciliação do escritor
viria de uma lógica desdobrada: o momento do pulo é transcendental. Não sendo
mais que isto, a escrita: a possibilidade de fazer da treva ensimesmada, treva
resplandecida.
Mas, se é que as palavras falseiam as intuições, há de se criar um novo degrau de realidade aberta e porosa. Tudo devém de uma convergência de dimensões irreconciliáveis, como sempre, o dentro e o fora, a rua e o interior, o tresmalhado e o âmago, por isso voltemos à corrente: um homem, só, sumário, suando sua própria realidade...
Mas, se é que as palavras falseiam as intuições, há de se criar um novo degrau de realidade aberta e porosa. Tudo devém de uma convergência de dimensões irreconciliáveis, como sempre, o dentro e o fora, a rua e o interior, o tresmalhado e o âmago, por isso voltemos à corrente: um homem, só, sumário, suando sua própria realidade...
Passa o carro, não olha; passa a bicicleta, não olha; passa uma ninfa, semi-nua, ilesa, fulgor e beleza – estreito, não olha. Então chega a Morte, anunciando dizeres: “Vai-te, pela corrente, porém a Indiferença verterá tua sensibilidade numa urna funerária, em vez de lançá-lo adiante pelos jatos violentos da criação”. Fatalmente morre, uma de suas muitas mortes. Lancinante é o violino que o parte.
18/01/2014
Breviário
Assalta-me a ideia do faroleiro. Que seria, então? Uma
espécie de mastro num terreno baldio bem distante, dando a esperança do solo
aos viajantes do mar. Resposta-signo à ventania que me lançaste, em certa
época, ao que logo marcou este período. Não há de se culpar as pedras por serem
pedras, há de chutá-las pela estrada afora, dando fim ao desejo motriz de não
ser como elas. A pedra que soltei aos quatro-ventos ainda não caiu ao chão, por
isso impera ainda a brincadeira do ciclope e juntamente a dos lábios que não se
encontram. Deram-me, em outras épocas, palavras marcadas, que logo cravei ao
peito. Delas não me desfaço, mesmo que me saltem à vista tantas outras. Com
elas, não devo errar o caminho. Porque as tenho, inquebrantáveis, faço do fundo
baú um depositório de objetos cintilantes, cuja luz é extensão sem tempo nem
espaço.
Não encontrei as facas da vida, sobre as quais dança quem ama, nem me cravei numa cruz, sacrifício pelo qual faria Hölderlin em sua busca pela ‘exatidão da palavra’, embora em certo momento vislumbrasse tais necessidades. A clarividência comum é tamanha, que por um momento, me proponho um breviário de obviedades. À simplicidade de uma frase, até mesmo quando tão-somente não bastava sua raiz sobreposta, se deve sempre recorrer humildemente. Da simplicidade à síntese, vice-versa.
Se de um conto sobre um faroleiro a um versado em Moby Dick vou, isso eu não entendo, mas posso inteirar-me. Duas histórias distintas podem muito bem se acrescerem. E de uma Lucía a outra Lucía, podemos ao fim conhecer apenas uma. Como ela se faz nos ciclopes da memória, tanto faz. Lucía está em Moby Dick, e a colheita de ambos, em mim.
Este é, pois, meu caos portátil. Podemos agora fumar nosso
cachimbo da paz.
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