segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Minúsculo retrato de meu país

Nesse lugar os dias são adiados como manhãs revogáveis. Adia-se o presente para um futuro incerto até que os anos cheguem como uma velhice precoce. A vivência gira em torno de um discurso único de violência, degradando cada vez mais o espaço e a alma de quem nele habita como objetos sucateados na província do isolamento.


As crianças desde muito cedo já se tornam vítimas das intrigas de seus pais. Os pais pautam suas vidas segundo o noticiário da TV da mídia de maior circulação e qualquer assunto gira em torno dos problemas do país. Quem ali estiver não passará ileso. Quem ali estiver sofrerá de aridez e de vida mirrada numa espécie de prisão sem retratamento social.

Conflitos só são ignorados na hora de se sentar à mesa para falar sobre eles. Deixa-se de lado qualquer esclarecimento e finge-se não escutar tudo que ressoa aos gritos, aos berros e aos prantos do âmago de cada um, desde a criança até o mais velho deles. Ao mesmo tempo, todo ataque será proferido na camada do descuido prosseguido da vida, para que a luta e a esperança de uma vida mais digna perca por cansaço, dando vez a um marasmo escaldante diante de uma tela ofuscada de conformidade irrequieta e angustiante. Verdades são preestabelecidas como ordens sem que reúna aquele que acabou de chegar a se integralizar à sua maneira de ter vindo dos ventos que o levou até ali. Para passar a se reunir e ser escutado, antes terá que observar as ruínas, cravá-las no peito feito raízes desoladas e, por fim, esquecer-se que um dia a torrente de lágrimas o visitou como um forte pressentimento.

A intolerância assolou o meu país. Passamos a confiar com alarde na primeira ajuda estendida como um leque da consciência da boa vontade e da cordialidade já escassas. Não há boas notícias senão as boas notícias dos amantes, à espera tranquila de seus sinais e a caminhar com eles. Lê à entrada do café, que há anos ali não passa, sobre as alterações para a ordem coletiva, dizendo que agora os fumantes serão excluídos inclusive das áreas externas dos ambientes públicos, cada vez mais escanteados para a escadaria dos prédios ao lado dos lixos.
(...)

Quem ali estiver não passará ileso.

{07.01.15}

Minha esperança obstinada

Mesmo para sair de um estado miserável, será preciso ao menos que aquele último fio da corda que o sustenta não se parta. Por um fio que é o mesmo que estar suportado por uma última e mínima gota no mar da esperança. Para sair de um estado miserável, não bastará apenas se levantar da cadeira, injetar fogo nos olhos e suportar a B e a C com cordialidade, como já bem reflexionou o mestre das metamorfoses. Para sair de um estado miserável, será preciso o mesmo despendimento de energia arrebatadora e monstruosa que levou alguém a acomodar-se na própria queda. Assim como para tudo isso, prevalecerá uma decisão, que se sustentará tanto maior se aumentada pela calma retirada do mais profundo âmago.

Não é necessário que alguém me conduza com as mãos, apontando-me com carinho e atenção aquilo que já não vejo. Não é necessário que alguém me retire com suas vísceras de minha acomodação feito a reação natural de uma felina selvagem ao ver seu filhote sendo amordaçado por algum caçador. Não é necessário que alguém me dê o trigo e o joio do que fazer com as cem direções apontando ao léu para qualquer vento quando meu tato se tornou áspero. Não é necessário que parta do sofrimento maior para que a percepção da luta e da sobrevivência se aclarem feito uma lição irreparável à espécie de animal que sou. Não é necessário que me prendam, assim como não é necessário que busquem meu retratamento social. À espécie de animal que sou que contém toda a espécie num único ser vivo, ao bicho feroz e espesso que sou que se confunde com o esgoto que sai das cidades para o encontro com o rio, ao humano demasiado humano que sou que pragueja e vocifera, que ama e que odeia, que sente e que reflete, que tem necessidades vitais e fisiológicas e que atende a toda sua particularidade espiritual e mental, profiro: do plano real e comum a toda gente do que é possível se encontrar no mundo, não há nada a mim que é necessário passar, porque não há nada que seja prescrito na ordem de um destino.

Como poderia assim ajudar quem quer que seja? Como poderia assim apontar caminhos? Como poderia assim oferecer o mar da esperança de mudanças prósperas para quem sabe se alguém a receberá ao menos num punhadinho de grãos quando nela já não há?

Como pode ser assim que há milênios um homem tenha feito ressoar o fluxo das águas da mudança e tenha chegado aos meus pés até à poça de lama onde um dia Hijikata se refletiu criança? Como pode ser assim que meu ser se preserve, persevere e na colheita abra-se feito um leque, enquanto ser na língua corrente nem se identifique com o ser gente?

Basta que em mim não morra a infinitude de minha esperança maior até a última e mais irrelevante. Um movimento característico dessa esperança obstinada é arregalar os olhos por se sentir ainda surpreso.


{04.01.16}

Vapor de cancioneira

O esquecimento não é um de repente
Não dar-se mais por conta
Que só volta a visitar
A lembrança de plano ofuscado
Quando inundado por um cheiro
Por um objeto de religare ao peito
Por uma leitura que percorre o plano inconsciente
Em dia de propícia relembrança.

Não, o esquecimento é bem outra coisa.

O esquecimento é uma prenda do tempo
De diabruras conosco
Dizendo-nos:

Rastejarás os dias, tu e tua lembrança,
Para que de tanto tê-la
Saberás já não a ter
Como da fonte seca
Ter o inútil de se beber.

O esquecimento resguarda em si
A razão de não acompanhar uma lembrança
Quando a feição reverencia aos pés
De uma flor que se abre
Na captura de um instante irrecuperável
Para logo desconfigurar a fotografia
Para logo murchar todo o fascínio da preamar.

O esquecimento arranca seus motivos
Leva aos ventos
E lá faz alquimia de sorte de peregrino
Indo a qualquer parte
Para bem querermos não mais os achar.

{06.10.2015}