quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Dedilhando canções para teus ouvidos



Quisera nos erguer sobre raízes de uma árvore secular para nos dar sustento diante da bravata do cotidiano eriçado. Quisera nos fazer de mastros, cada qual em sua ilha, para lançar luz sobre os mares que nos dividem a direção futura. Quisera ser a ponte e o caminho entre minha veia e a sua veia, no percorrer combustivo de tudo que se constitui em nós. Quisera num jato de criação soltarmos todas nossas fendas e depois reluzirmos em sete mil cores, despendidas entre o sentir e o chorar. Quisera derramar-me e expandir-me na cal de terra desse encontro, deixando fluir livremente o presente, regozijado com toda franqueza. Quisera refazer-te em palavras, deter-me em ti por um instante, para pôr fel em teus lábios que me lêem e para preservar o invólucro de luz lunar em teu olhar. Quisera perder-me e reencontrar-me em ti, como única cumeeira a se retornar. Quisera na multidão em alvoroço um olhar-nos correspondido, dando a serenidade de nossa apátrida do mundo. Quisera a camada e a última demão de tinta azul sobre nosso corpo, para alcançar o céu pela pele. Quisera o destino sorrindo-nos de travessuras úmidas. Quisera o vão do labirinto de teu peito alcançando o meu vão de labirinto. E no toque mediúnico desta pele, recontando e sussurrando em mantra sobre todas as noites e todas as canções de amor sem fim...

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Sem título



Este é um texto que começa com uma gruta fechada. Não se pode estar na pele de ninguém, nem interpretar o mundo por uma visão pessoal. De regresso, as coisas partem pelo fim de onde se lançaram e de onde foram lançadas. Cada qual com seu resíduo nas mãos, cada qual caminhando com seu pó. As coisas não se põem em seu lugar; as coisas estão ali, redistribuídas em sua cena. Elas são produzidas por ajuntamentos e intensidades, que ora se expandem em força, ora se retraem em busca de seu refúgio.

Este é um texto sem estratagemas e floris. Dos livros, não se brotará nenhuma experiência. Das palavras, no entanto, reforçar-se-á uma expressão, que caberá no entorno de toda uma vida moldável no esforço de algum aprendizado que vá além. 

Este é um texto despretensioso em estilo. Não surtirá o dom, que se comunica pela sombra de cada tradutor. Não caberá à esperança dar abrigo ao que já foi dado no mundo e ao que não teve como partida o seu espetáculo maravilhoso. 

Este é um texto circunspeto sem incisão. Toda sutura transformar-se-á em vida vermelha nas veias. Nada será desvelado, se não estivermos engajados com o aprendizado do saber que se tira do Tempo. Tudo poderá se repetir, se não encararmos o Diverso como regra do Mesmo.­

Este é um texto onde o que foi centelha, hoje é o pequeno fazimento do trigo. Sem lugar no mundo, que colhe a plantação e se vê impedido de guardar o próprio lavor, e até secretamente. 

Este é um texto que se exaure e que se esvai. Em duração, com o vento. Para fazer sobreviver, ainda, a linguagem poética. Ora morta, em breve, reviva. 

{31/10/2014}

Prenúncio


Sentada ao chão do convés, já pode então começar a ver à distância. Primeiro se desprende das imagens da memória, não havendo resgate na noite. Depois se desprende da forma de escrever e do embaralhar dos pensamentos. Do nada que não contém nada se pode deduzir. Com auxílio do tempo em prelúdio, devia ao menos fazê-lo fluir para além do fluxo sanguíneo. Trabalha com formas no instante em que prenuncia uma criação e pode fazê-lo sem tijolos simbólicos. Fazê-lo deve ser ao menos anunciá-lo. Como despertará amanhã depois do prenúncio? De onde iniciará para voltar à condução locomotiva do hábito? De quê intranquilo sonho virá a pregar-se com o todo-sabido levantar do Sol? E no quê interfere o meu conhecimento dele sobre o seu fazimento costumeiro e primitivo de estruturas pedregosas?  Por enquanto, apenas impera o rigor da necessidade. Por enquanto, morte e vida em potência fazem sua combustão de retoque. O que já foi escrito, catalogado nas estantes empoeiradas por mundo afora, sendo agora somente a vez de realizar o seu próprio escrito poeirento, o seu próprio documento de passaporte identitário, a única forma para si encontradamente acertada de lançar-se pura vida em manancial e em reserva.  Formas estéticas de beleza, e não de sublime, a evadem para conter o impronunciável. Há de se perceber na imagem a sua última demão de tinta, e posteriormente, o seu reparo, este agora nas mãos de outro artesão, algum outro mais minucioso. Derramar-se em cal e remodelar-se inteiramente, mais de uma vez e incansavelmente... Acordar com cabelos longos, com a história das nebulosas na fibra de cada fio, com a indignação por ter se espantado dignamente pela noite, e, finalmente, na cara, a expressão dessa viagem que faço a sós comigo, da experiência posterior ao estonteamento e ao declínio da matéria carne e osso feito pedra polida. O resto – o resto é Ópio.  

{15/10/2014}

Poeminha recluso



Dias quebrantáveis
onde sou
parte-míssil

onde sou
eternidade
enquanto dura,

onde sou
parte móvel
e removível
do todo diário.

{janeiro de 2014}

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Uma perspectiva



Na cadeira do presente, que molha o passado, uma perspectiva vindoura. Certamente muita coisa esquecerei, como se esquecem gotas e prantos na margem de um rio. Os liames que me pregarão para o que se segue certamente me puxarão rente ao chão da imensidão de uma memória duvidável e de uma memória elegida por um dedo inconsciente que jamais se declarará. Imensidão pela aderência na corda dos acontecimentos, de um indivíduo com narrativa e história? Mas como, se ter imensidão é estar aportado de uma existência que ainda não se iniciou, de uma existência pré-natal ainda não acontecida? O mistério da aderência é o grande risco, o primogênito de uma caminhada sem retorno. Dessa aderência me despreguei e voltei a grudá-la, compactuando com as amarras de um pulsante retorno ao lugar dentro de si onde primeiramente se aportou, num pulo pela saída mental no labirinto dos abismos consanguíneos. Definitivamente não se compactua com o segredo de figurantes de uma narrativa bem situada, e nem mesmo com o seu contrário, com todos os abismais. O figurante se anula, está sob um véu de bisturis e plásticos alicerces, cada vez mais introduzidos na argamassa das representações. Os abismais, muitos os guiarão ao centro da floresta soturna, apenas um encontrará a base que o mantém firme e a sua própria maneira de perigo. Recorre-se a meditações e fugas nos recantos da memória, o ser solitário sem aderência e sem lar, como a uma criança que chora por seu leite vital, em um inescapável retorno à grande roda. A ventosidade da alma não tem lar, é um estranho na terra; o ser solitário compõe o seu segredo como num bordado de linhas de ouro, no instante ativo de todos os instantes. Esquecerei de um ponto e de outro ponto, de um acontecimento e de outro. Habitarei apenas o desenho que compus nas tranças da memória, restando um punhado de importâncias nulas e outro punhado de importâncias cruas. E apenas até onde o controle das mãos não possa tremer a arte de compor livremente, a violência com que meu destino foi lançado encontrará enfim o porto originário de uma palavra fulgurante.

Sobre percepção, e sobre como o deleite estético é uma humanidade



Toda força centrífuga interior que posso conter se esparrama neste dizer. Dizer que tenho tido olhos e ouvidos para ver e ouvir o que me rodeia no seu viés sensível através dos meus próprios sentidos é dizer que meu conhecimento não se contém pela discursividade. Que todo pensante-que-sente se expressa à sua maneira - no leque das possibilidades subjetivas existe outro leque, o qual se abre à variedade das possibilidades do manuseio que cada um encontra. Que existe um espaço para a comunicação, e outro para mera percepção e entendimento de si, sem que com isso se atrele o liame do outro. Que estes que se voltam à importância da expressão têm como força motriz o querer ser poeta-autor de suas vidas, para reunir numa só alma e para reunir num só sentimento o conjunto da história humana, que se sente como sua própria história. Dizer que esta visão não é ingênua, que é sim unificante no ponto que condiz-nos propriamente como humanos, e dizer simplesmente que não há no convés ninguém com o qual eu não me identifique. Se a antevisão do convés me colocou ao rés do chão com todos os que ali estão, o poeta então capturou a sua imagem para expressar o que gostaria de expressar: os ruídos da alma paralisaram por um instante, dando brecha para uma felicidade específica que percorreu por todo o corpo. E se desfazendo constantemente de sua riqueza inesgotável e de sua força, pode derramá-la no mar.