segunda-feira, 28 de julho de 2014

Uma perspectiva



Na cadeira do presente, que molha o passado, uma perspectiva vindoura. Certamente muita coisa esquecerei, como se esquecem gotas e prantos na margem de um rio. Os liames que me pregarão para o que se segue certamente me puxarão rente ao chão da imensidão de uma memória duvidável e de uma memória elegida por um dedo inconsciente que jamais se declarará. Imensidão pela aderência na corda dos acontecimentos, de um indivíduo com narrativa e história? Mas como, se ter imensidão é estar aportado de uma existência que ainda não se iniciou, de uma existência pré-natal ainda não acontecida? O mistério da aderência é o grande risco, o primogênito de uma caminhada sem retorno. Dessa aderência me despreguei e voltei a grudá-la, compactuando com as amarras de um pulsante retorno ao lugar dentro de si onde primeiramente se aportou, num pulo pela saída mental no labirinto dos abismos consanguíneos. Definitivamente não se compactua com o segredo de figurantes de uma narrativa bem situada, e nem mesmo com o seu contrário, com todos os abismais. O figurante se anula, está sob um véu de bisturis e plásticos alicerces, cada vez mais introduzidos na argamassa das representações. Os abismais, muitos os guiarão ao centro da floresta soturna, apenas um encontrará a base que o mantém firme e a sua própria maneira de perigo. Recorre-se a meditações e fugas nos recantos da memória, o ser solitário sem aderência e sem lar, como a uma criança que chora por seu leite vital, em um inescapável retorno à grande roda. A ventosidade da alma não tem lar, é um estranho na terra; o ser solitário compõe o seu segredo como num bordado de linhas de ouro, no instante ativo de todos os instantes. Esquecerei de um ponto e de outro ponto, de um acontecimento e de outro. Habitarei apenas o desenho que compus nas tranças da memória, restando um punhado de importâncias nulas e outro punhado de importâncias cruas. E apenas até onde o controle das mãos não possa tremer a arte de compor livremente, a violência com que meu destino foi lançado encontrará enfim o porto originário de uma palavra fulgurante.

Sobre percepção, e sobre como o deleite estético é uma humanidade



Toda força centrífuga interior que posso conter se esparrama neste dizer. Dizer que tenho tido olhos e ouvidos para ver e ouvir o que me rodeia no seu viés sensível através dos meus próprios sentidos é dizer que meu conhecimento não se contém pela discursividade. Que todo pensante-que-sente se expressa à sua maneira - no leque das possibilidades subjetivas existe outro leque, o qual se abre à variedade das possibilidades do manuseio que cada um encontra. Que existe um espaço para a comunicação, e outro para mera percepção e entendimento de si, sem que com isso se atrele o liame do outro. Que estes que se voltam à importância da expressão têm como força motriz o querer ser poeta-autor de suas vidas, para reunir numa só alma e para reunir num só sentimento o conjunto da história humana, que se sente como sua própria história. Dizer que esta visão não é ingênua, que é sim unificante no ponto que condiz-nos propriamente como humanos, e dizer simplesmente que não há no convés ninguém com o qual eu não me identifique. Se a antevisão do convés me colocou ao rés do chão com todos os que ali estão, o poeta então capturou a sua imagem para expressar o que gostaria de expressar: os ruídos da alma paralisaram por um instante, dando brecha para uma felicidade específica que percorreu por todo o corpo. E se desfazendo constantemente de sua riqueza inesgotável e de sua força, pode derramá-la no mar.

Conto do deus limitado



Como todo deus limitado, que não pretende dissipar as nuvens nem sujeitar o modo de pensamento humano ao jugo do seu próprio, encontra-se ele a lacrar suas pequenas caixas no recanto de seu lar. Por muito tempo não se disporá a abri-las novamente, esta sendo sua decisão tácita. O que lá haveria que agora se impõe a ocultar-se no vocabulário? Não que se dissolva pela realidade, não, porque pode ser sim encontrado no âmbito do mundo, o que lá há se sabe ao certo que se perde no âmbito do mundo comum e visível, assim como tendem a fazer todo conteúdo das pequenas caixas que se encontram ao fim do armário de um lar: dessa perdição por corpóreos adentro, ele sabe, é pelo que não quer se dar conta mais. Que seja brutal o que lhe é exterior, a isso está acostumado, tanto que não raro seus olhos estão vermelhos e seu coração palpita dilaceradamente quando algo como uma mistura de vontade, recepção do ímpeto e cansaço lhe torna a si mesmo como ponto de chegada marcado com um traço de corrida esportiva. Pequenas caixas amontoaram-se, chegando o tempo de reavê-las, mas foram vistas maiores em cada recordação, mais dissemelhantes à deformação do tempo, ou mais verdadeiras ao defronto com o tempo? Com esta indagação, intuindo todas as três direções de uma resposta mais convincente, resolveu assim calar a gruta de sua narrativa passada. Para trás gostaria de não olhar novamente, e soube no instante que uma criança gritou por trás de seus ouvidos que o ponto de chegada era exatamente no ponto por onde ele ali passava. “Se alguém devo eu escutar, decerto seria uma criança. A que direção devo eu tomar, se o fim de meus passos viu o seu apaziguamento num encontro de direções?”. Para recomeçar a trajetória das horas, preferiu apenas escutar uma música mediúnica e finalmente descansar.