sábado, 18 de maio de 2013

Sem fazer da mosca um elefante*


Folhas, folhas, folhas, ao rés do chão no quintal do homem cortês, moscas, letrinhas de moscas, antigas moscas a zumbir as aparências? Voltaria àquela tarde de ventania num estalar por uma simples lembrança. Tardes, todas as tardes poderiam ser regadas por algum licor doce, em dose pequena, um espreguiçar em cadeiras de madeira de uma alegria breve e uma companhia desinteressada de nossos rumores. Gostava-se de registrar os sinais da juventude: bastaria ali se estar para que todo o arredor encontrasse sua própria graça. Não se sabia das sombras. Se lá assinalavam folhas, era pelo sentido de nelas se desenhar formas, que em todos os outros instantes nos eram incognoscíveis. Percebia eu, percebia ele, que aquele era apenas o iniciar de nossa vida adulta, e que nos preparávamos em direção a uma sucessão de esperançosos encontros - daquele momento em diante, crendo ser o melhor modo de conduzir-nos; o melhor modo de dignificar conjuntamente os palatos, o espírito e o intelecto? [Tardes de presença consagrada, profusão de transformações...]


* dito provérbio, encontrado em a "Mosca" de Luciano de Samósata, e traduzido pelo querido amigo Guichérmo.



segunda-feira, 29 de abril de 2013

Poema de Samuel Beckett

CASCANDO
(Samuel Beckett)
Trad. de Raul Macedo

1
por que não simplesmente não esperar
a ser a ocasião
de um despojar-se de palavras

não é melhor abortar que ser estéril?

depois da sua partida as horas são tão tristes
sempre começarão a se arrastar demasiado breves
os garfos cegamente agarrando o leito da miséria
resgatando os ossos os amores antigos
as órbitas preenchidas por olhos como os seus
é melhor sempre breve do que jamais?
negra necessidade salpicando os rostos
dizendo uma vez mais nunca flutuou nove dias o amado
nem nove meses
nem nove vidas

2
dizendo uma vez mais
se você não me ensinar eu jamais aprenderei
dizendo uma vez mais existe um último
tardar de vezes últimas
vezes últimas de mendigar
vezes últimas de amar
de saber não saber simular
um último tardar de últimas vezes de dizer
se você não me amar jamais serei amado
se eu não lhe amar eu jamais amarei
um bater de palavras gastas uma vez mais no coração
amor amor amor golpe de uma bomba antiga
moendo o soro inalterável
das palavras
uma vez mais aterrado
de não amar
de amar e não a você
de ser amado e não por você
de saber não saber simular
simular
eu e todos os que lhe amarão
se lhe amarem

3
a menos que lhe amem

CASCANDO
(Samuel Beckett)

1
why not merely the despaired of
occasion of
wordshed
is it not better abort than be barren?

the hours after you are gone are so leaden
they will always start dragging too soon
the grapples clawing blindly the bed of want
bringing up the bones the old loves
sockets filled once with eyes like yours
all always is it better too soon than never
the black want splashing their faces
saying again nine days never floated the loved
nor nine months
nor nine lives

2
saying again
if you do not teach me I shall not learn
saying again there is a last
even of last times
last times of begging
last times of loving
of knowing not knowing pretending
a last even of last times of saying
if you do not love me I shall not be loved
if I do not love you I shall not love
the churn of stale words in the heart again
love love love thud of the old plunger
pestling the unalterable
whey of words
terrified again
of not loving
of loving and not you
of being loved and not by you
of knowing not knowing pretending
pretending
I and all the others that will love you
if they love you

3
unless they love you

sábado, 27 de abril de 2013

Maurice Blanchot

"Mas, então, onde começa e termina a obra? Em que momento existe? Por que torná-la pública? Por quê, se é preciso preservar nela o esplendor do puro eu, fazê-la passar ao exterior, realizá-la, em palavras que são as de todo mundo? Por que não se retirar numa intimidade fechada e secreta, sem produzir nada mais do que um objeto vazio e um eco agonizante? Outra solução: o escritor aceita suprimir-se ele próprio: na obra somente conta aquele que lê. O leitor faz a obra; lendo-a, ele a cria; é o seu verdadeiro autor, é a consciência e a substância viva da coisa escrita; assim, o autor só tem uma meta, escrever para o leitor e confundir com ele. Tentativa sem esperança. Pois o leitor não quer uma obra escrita por ele; quer justamente uma obra estrangeira em que descubra algo desconhecido, uma realidade diferente, um espírito separado que possa transformá-lo e que ele possa transformar em si. O autor que escreve especialmente para um público, na realidade, não escreve: é esse público que escreve, e, por essa razão, esse público pode mais ser leitor; a leitura o é apenas em aparência, no fundo é nula. Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas - ninguém as lê. Daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los a eles mesmos: é que os outros não querem ouvir suas próprias vozes, mas sim a voz de um outro, uma voz real, profunda, que incomoda como a realidade."

(A literatura e o direito à morte;
Da parte do fogo - Maurice Blanchot)

sábado, 20 de abril de 2013

Eleição de uma escrita

Encontrei bons títulos dados às coisas, e o que realmente me importava o conteúdo expresso e acabado de outras mentes se não fosse para ali encontrar conjuntamente o diálogo verdadeiro humano e o poema que lhe cedesse libertação? Que me importava a notícia de outras longitudes, se não fosse para encontrar, atrelada à sua descoberta, o sinal de um humor empático que indicasse as regiões desconhecidas a que naturalmente me induziriam? Muitas vezes reproduziu-se em mim o achado por um nome. The Poet Acts, o nome-título do som descendente deste texto, pois. Nada do que desejo falar corresponde a teorias acabadas, conquanto a teoria ela mesma é o afastamento da condição mortal (sic). Falo somente porque disponho da condensação dos encontros, da longínqua injunção de eleger as coisas, e porque circundando, em algum momento devo proferir e designar as desordens, como que para embaralhar e depois formar castelos de cartas.

Os panos com suas costuras, a tecelã ancestral a remediar anos e a compor mais tramas, os nós atados levados às galerias e aos palcos como arte; os despojos dos transmundos além de mim... Todos e muitos, bem situados no transcurso segundo suas circunstâncias, e mesmo o homem mais exasperado era o homem cujo olhar poderia sempre se crer e cujas mãos apenas repetiam os gestos laboriosos da sensatez. Que me importava se estivessem todos maquinalmente juntos numa contribuição secular? ...quando algo em mim insistia em clarificar que ainda mais necessária era a minha própria leitura? Quanta comodidade, quanta serenidade, a de poder apenas escutar o murmurinho das casas e acreditar que se está à companhia de todos na rua! A minha interpretação, que já não podia ser mais meramente fictícia ou inventada, mas que urgia conciliar-se com a minha consciência, elegeu então mais uma vez, tomada pela clareza de uma compreensão maior que se abre numa pergunta:

Como acolher o homem cujo coração não é uma demanda extravagante?*

(*Juliano Pessanha, Ignorância do sempre)

quinta-feira, 7 de março de 2013

"Pouco povoada de início"


Passo o dia contida de palavras. Guardo-as com a intenção de levá-las à cama para restituir em mim os retalhos elegidos, quando a inquietude toma algum lugar na ante-sala do apaziguamento, findo o composto de horas subtraídas às dos sonhos, do qual chamo dia e realidade, e onde estou mais a exercer o papel do fantoche de alma incógnita do que a exercer a existência do Eu imaginário que desejei para mim. Passei muitos dias enterrada num túmulo de palavras, e não obstante, no fosso desta terra significante, ainda procurei por mais vermes-palavras que me nutrissem os ossos já carcomidos por palavras já usadas, catadas no acúmulo das horas gastas em leituras diversas. Haveria de ser autêntico o reuso, e a sua absorção e o seu ulterior aparecimento, como a confirmar a alma da minha inconsciência sob o meu próprio domínio, numa escrita de cego nebuloso que está sempre à iminência do ato criativo. Guardei muitas palavras e hoje a elas me explico: o débito é grande, pois havia a promessa de um jardim mediúnico a dar-lhes o acabamento perfeito de uma entoação poética e em forma miraculosa (que eu ainda desvendaria). Muitas formas de iniciar o texto encontrei, fragmentos já elaborados contendo em duas ou três palavras o sentido originário do que eu ainda viria a procurar, quando fosse o momento, mas nenhuma vez mais voltei às folhas soltas afim de encontrá-las. Por exemplo, agora volto a uma apenas, restituindo o uso num roubo descarado, e bem poderia prosseguir assim, como quem inicia uma nova respiração: “pouco povoada de início”, a verdade é que minha terra só registrou a particularidade do insight de uma única palavra, descontextualizando-a do que lia para não perdê-la do que em mim se fazia; “pouco povoada de início”, ao medo de ver-me a um pé só, desmembrada, na hora do arroubo, sem nenhuma palavra exata que me desse sustento... Pois, e se a palavra exata e necessária já estivesse passado por mim, e se naquele momento de urgência e vivacidade mortal, eu não pudesse retomá-la? Eu não poderia, assim, aceitar a perda. Teria de registrá-las, palavra por palavra. Conhecia desde o início o valor de cada uma, o valor dado por mim ao encanto de seu raro uso, e a elas lhes daria outro contexto tanto melhor quanto o da primeira vez visitado; o meu registro, e graças a elas, eu poderia então conhecer os meus clarões.

(...)

"Entre todas as diferentes expressões que podem dar um só de nossos pensamentos, só uma é a boa. Não a encontramos sempre falando ou escrevendo: é verdade, apesar disso, que ela existe."
(La Bruyère)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O nódulo das despedidas, enfim


“Mas agora cessai e nunca mais para o futuro
O lamento suscitai;
Pois, em todos os quadrantes, o que aconteceu retém junto a si
Guardada uma decisão de plenitude.”
(Édipo em Colonos, Sófocles)


Revisitada de encantamentos, repentinamente e em espaço de tempo curto, via-me já prestes a transferir minha alma à terra natalícia. Por um momento, tomada ao espanto, quão raro pareceu-me ser o que brotasse ao redor deste sentimento tão vívido, e que por isso, já me estranhava ao corpo mesmo, a nova presença a evocar vastamente no transcurso dos pensamentos diários.

Foi então que me disse, quebrando a rosa de meu espanto ao mesmo tempo desejado e flutuante, e ainda eletricamente intacto, com a força do proferir claro e evidente, enquanto novo, novo, era aquele embaraço do estar presente sem saber delimitar-se, com os gestos ruidosos pelas distâncias que se estendem de um ao Outro, cada um pleno de forma montanhesa; enquanto eu permitia-me o início de um lamento por motivo do tempo que se seguiria tão acertadamente divisor daquele acontecimento nos dado à sorte das horas, que mais passam do que abundam, quanto de sons inverossímeis a substituir palavras doces e a marcá-lo, com uma obscura dicção do que “não-é” em espiral ecoante...: “Boa viagem, até”.