quinta-feira, 7 de março de 2013

"Pouco povoada de início"


Passo o dia contida de palavras. Guardo-as com a intenção de levá-las à cama para restituir em mim os retalhos elegidos, quando a inquietude toma algum lugar na ante-sala do apaziguamento, findo o composto de horas subtraídas às dos sonhos, do qual chamo dia e realidade, e onde estou mais a exercer o papel do fantoche de alma incógnita do que a exercer a existência do Eu imaginário que desejei para mim. Passei muitos dias enterrada num túmulo de palavras, e não obstante, no fosso desta terra significante, ainda procurei por mais vermes-palavras que me nutrissem os ossos já carcomidos por palavras já usadas, catadas no acúmulo das horas gastas em leituras diversas. Haveria de ser autêntico o reuso, e a sua absorção e o seu ulterior aparecimento, como a confirmar a alma da minha inconsciência sob o meu próprio domínio, numa escrita de cego nebuloso que está sempre à iminência do ato criativo. Guardei muitas palavras e hoje a elas me explico: o débito é grande, pois havia a promessa de um jardim mediúnico a dar-lhes o acabamento perfeito de uma entoação poética e em forma miraculosa (que eu ainda desvendaria). Muitas formas de iniciar o texto encontrei, fragmentos já elaborados contendo em duas ou três palavras o sentido originário do que eu ainda viria a procurar, quando fosse o momento, mas nenhuma vez mais voltei às folhas soltas afim de encontrá-las. Por exemplo, agora volto a uma apenas, restituindo o uso num roubo descarado, e bem poderia prosseguir assim, como quem inicia uma nova respiração: “pouco povoada de início”, a verdade é que minha terra só registrou a particularidade do insight de uma única palavra, descontextualizando-a do que lia para não perdê-la do que em mim se fazia; “pouco povoada de início”, ao medo de ver-me a um pé só, desmembrada, na hora do arroubo, sem nenhuma palavra exata que me desse sustento... Pois, e se a palavra exata e necessária já estivesse passado por mim, e se naquele momento de urgência e vivacidade mortal, eu não pudesse retomá-la? Eu não poderia, assim, aceitar a perda. Teria de registrá-las, palavra por palavra. Conhecia desde o início o valor de cada uma, o valor dado por mim ao encanto de seu raro uso, e a elas lhes daria outro contexto tanto melhor quanto o da primeira vez visitado; o meu registro, e graças a elas, eu poderia então conhecer os meus clarões.

(...)

"Entre todas as diferentes expressões que podem dar um só de nossos pensamentos, só uma é a boa. Não a encontramos sempre falando ou escrevendo: é verdade, apesar disso, que ela existe."
(La Bruyère)

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