sábado, 17 de outubro de 2015

Tentativa de prosa - ou esboço da ficção de si, parte 2.

Reluto por chegar à cena de configuração estática. Aquela que por definição ressalta à vista por uma descoberta inegável, por onde passamos e já não se pode mais ser o mesmo. Uma viagem poderia bem ser um presente em leque para uma feitura literária de livre composição. Sabe-se lá como esse relocamento de um ponto ao outro fica ali estendido por um tempo, no transcurso diário dos dias comuns, a rememorar o que passou como a gravação de uma paisagem que rebobinamos incessantemente, até nos fartarmos de tantas perspectivas vistas sobre uma mesma coisa. O certo é que ali fica, em algum plano da memória, como um período intransferível e, como se não bastasse isso, ficamos nós feito formigas na edificação de um edifício, a realizar diariamente aquilo que parece ter como fim mais uma viagem, mais uma fuga, mais uma reconfiguração pela memória de uma vida que segue o seu percurso, seja da forma que for. Como poderia eu, assim, voltar a esse lugar do plano consciente de meu estado desperto e transpassar em linguagem o espanto de ter descoberto a palavra dita no momento incerto?...

A vida segue o seu fluxo e dizemos avante numa desordem que é como estar ao mesmo tempo negando o pé que está na contramão e dando vez ao outro que está no acelerador. Até que se descubra, pela aleatoriedade dos eventos de um livro, a possibilidade metodológica de passar em um teste seguindo a ordem não linear da sorte. E então dizemos: Para ti, tal modo de configuração coube-te feito uma roupa de alfaiataria, já para mim é bem outra coisa. E então ouvimos ressoar a primeira pergunta: O que para mim é uma configuração assertiva da disposição das coisas para o sucesso de meus afazeres? E devolvemos: Para mim, reitero, há anos tenho disposto livros e acompanhado as ocorrências feito uma observadora integral do que está a minha volta, e ainda não estou por convencida de que esta tem sido a melhor a que me proponho. Em particular, de quê metodologia, me perguntaria, caso o diálogo romântico seguisse a ordem do que se espera: Aquela que alterasse os eventos sem cronologia da sorte. E dessa maneira podemos enfim recomeçar o diálogo, de um ponto de partida onde o indivíduo é o seu próprio relato que partilha da experiência de si com os outros, costurando as modificações que lhe alteram o hábito.

Tal é o espanto quando finalmente nos defrontamos, como que numa convergência de linhas conscientes e experiências presentes, com algo que se apresenta de forma indistinta. Peguemos então um livro do qual só utilizaremos para compreender melhor a realidade que nos cerca. Esgotada a sua possibilidade, fechamos o livro e já não o cavoucamos para além da vida que se tem diante de si. Com o que ficamos a balancear e a reflexionar, depois desse caminho de plano consciente elaborado por outra mente de fluida edificação racional? Ela se mostra condizente a uma narrativa da qual aceitamos sem negar a sua capacidade de descrição real, de possibilidades que se tem no mundo com as quais participamos ao mesmo tempo em que nos distanciamos delas. É assim que é nos dada a capacidade de elaborar as nossas próprias possibilidades no decurso de um tempo, cujos efeitos são adquiridos somente com a paciência de se olhar para frente.

Voltamos então ao ponto de partida. Ponto de partida este que seria uma ruptura ou um declínio? Retoricamente se pergunta, muitas vezes, quando se tem a resposta na ponta da língua, porém se quer ainda ver os efeitos que o decurso do pensamento proporcionará. Não querendo fazer desta construção um discurso de pensamento assertivo, vou à tangente da questão e digo diretamente: o declínio poderia ser o homem enervado diante de uma circunstância, e é preciso dizer que está sempre diante de algo, ao ver que a sua única solução seria voltar para trás, rebobinar desde o começo a paisagem que lhe traz o sentimento de urgência, dispondo-a de qualquer maneira, a qualquer custo de sua saúde, como aquilo que apresenta-se a ele como prenda, onde o tempo é o que dá o domínio e o enlevo sobre as coisas. Aqui defenderia a ruptura, uma vez que o declínio é um homem por demais de atolado em meio a livros poeirentos, em meio a algo que ainda não o descobriu como palha seca. A ruptura diferencia-se do declínio enquanto marcação do compasso das horas de um homem, enquanto o declínio já é a própria doença do homem enquanto caso perdido. Ali ele pode situar-se, habitar o seu corpo feito estrutura sólida, e dizer enfim que teve um começo e que teve um fim, sem que a palavra ressoe como peso de medida que morre ao se espatifar no chão. A ruptura aqui, contudo, é minha imagem estática, aonde cheguei sem que forçasse o discurso do pensamento, liberada que ficou esta paisagem.

A imagem decorre de um transfiguração inicial, pendente que ficou a identidade nos momentos de alteração climática para dentro da alma. O passeio que faço decorre do estado de espírito de um passarinho bêbado. Dias mais tarde, leio um trecho de um livro que diz que para os vaabitas há somente dois pecados mortais: ter outro deus que não o seu e - fumar, que é o que eles chamam do modo infame de beber. De modo igual, dizia, que entre os antigos romanos havia a ideia de que uma mulher só podia pecar mortalmente de duas maneiras: cometendo adultério e - bebendo vinho. Temendo que o espírito orgiástico e dionisíaco assolasse as mulheres do Sul, quando o vinho ainda era algo novo na Europa, aquilo era um tremendo de um exotismo, de modo a transformar a sensibilidade romana, sendo vista quase como a traição de Roma, a incorporação do estrangeiro. Pois veja bem, diante disso, reconfigurei a minha paisagem. Podia ser um crime ou não passear bêbada narrando aos ouvidos de um homem contemporâneo aquilo que improvisava no meu discurso, com os recursos da hora, como que para modificar a sensibilização de meu estado de espírito futuro, ao recordar o que de mim era feito e dado pelo gesto e pela palavra, uma vez que pressentia que algo ali não corria mais tão bem. E bom, muito se foi dito sobre a mulher no decurso da história, e nenhum fez jus à sua figura, nem mesmo na literatura mais atual, que é como uma punhalada na sensibilização da vida mais reatualizada de hoje. É que nessa viagem me apegava a ideia de amor, do êxtase místico e da diferença do estado de enamoramento para o que é quase indefinível de se dizer o qual se chama de amor, mulher que sou a definir-me com uma mala a tira colo e um coração que tenta ser fiel a si próprio por vezes. Soltei algumas palavras “Você uma vez me disse algo que seu amores foram obsessivos... E neste livro o mesmo que me disse, visto de outra forma, tal se chama êxtase místico...”. Disse como que para ele encontrasse aí alguma cura, algum afago, talvez, que, como dizia outra parte daquele livro, a natureza da mulher é a docilidade, enquanto a do homem é a da vontade. O sol à pino naquela praça. A minha posição sentada como que de meditação sobre o banco. O seu corpo deitado em um conforto de se estar na rua que jamais vi antes em parte alguma. A nossa fumaça que era o fim daquela intraduzível conversa para outros passantes, dando a marcação da ruptura. E finalmente, as palavras se espatifando ao chão... “Não”, foi o que me disse, embora não me lembre mais se fora pronunciado, ou se um simples gesto com a cabeça havia sido reproduzido em mim como algo dito: “Não, não é mais assim, não toquemos jamais nesse assunto, esqueça...”. Havia um muro à frente. Derradeiramente, meu olhar desviou-se, confuso: o muro ostentava a Vontade. Dias se seguiram e neguei-a. Apegada a uma lembrança de algum ideal de ascese, impraticável no meu meio. Dias se seguiram e languidamente me vi consumida. Dias se seguiram e só amanhã irei tomar coragem para retratar-me: continuarei esta fábula. Os recursos ociosos serão: hipérbole, uma pitada de acridoce e um vasilhame de ficção carregada por uma vida de realismo irretratável. É isso, então.


(...)

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